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quinta-feira, 24 de março de 2011

Mulholland Drive, finalmente cheguei lá...acho eu

Toda a obra de arte é passível de obter interpretações distintas pelo simples facto de que não existem dois seres humanos iguais.
Para mim uma obra é arte quando apela à subjectividade, desafia o intelecto e, embora seja mais "imediato" ou actualmente mais "comum" que isso aconteça com algo como uma música ou um quadro, quando esse desafio surge num filme é porque algo extraordinário foi criado.
Revi ontem (obrigado canal Hollywood) uma das minhas obras de arte favoritas, o filme Mulholland Drive de David Lynch, e, num acto que nada tem de original, decidi vê-lo com vista a elaborar interpretação pessoal do que será realmente a história do filme.
À partida é bastante fácil de se perceber que ao longo do filme a linha temporal está toda trocada mas é a atenção a pequenos pormenores que nos vão conseguindo situar.
Tudo o que vou escrever agora será apenas a minha interpretação, e, caso ainda não tenham visto o filme aconselho a não ler este post até o fazerem mas aconselho sim a depois voltar para comparar o que o filme vos fez entender.

Realidade...

Embora ao longo do filme seja possível ir desconfiando disto ou daquilo é na cena do jantar em casa do realizador Adam Kesher que praticamente a totalidade do background das personagens é revelado. A actriz Diane Sellwyn é convidada, num acto de sadismo e tortura sentimental, pela actriz Camilla Rhodes, com quem está sentimentalmente envolvida embora o sentimento não seja mútuo, para assistir ao pedido de casamento por parte de Adam a Camilla. De uma maneira forçada repete continuamente actos de afecto com vista a massacrar Diane. É também neste jantar que se sabe que Diane Sellwyn é uma jovem canadiana que ganhou um concurso de dança e que foi para Los Angeles para tentar ser actriz com 50.000 dólares deixados em herança por uam tia. Daqui se tiram alguns sinais importantes:
  1. A curva, em Mulholland Dr., onde posteriormente acontece o acidente, é na verdade a mesma da casa de Adam
  2. Diane vai para lá na mesma limusine do acidente, onde é recebida por Camilla
  3. Os 50.000 dolares são os mesmos que aparecem na mala de Camilla
  4. É aqui que aparecem a actriz loira que beija Camilla, o Cowboy e Coco (a mãe de Adam).
  5. A cena inicial do filme em que vemos vários adultos a dançar representa o concurso que Diane ganhou
  6. A mãe de Adam diz-lhe: "Chama-me Coco, é o que todos me chamam"
Depois do anúnciar do casamento é fácil ver o ódio no rosto de Diane.
Um olhar de tristeza e desilusão preenchem a sua cara, o ambiente da sua casa é quase decadente e pesado, a sua roupa um pouco ordinária, a maquilhagem borrada, o que nos mostra que para além do amor não correspondido, Diane a inveja também o facto de Camilla singrar como actriz principal ficando ela apenas renegada a personagens secundárias, como na cena em que está num cenário distante, acentuando uma ideia de frustração por parte das pessoas que vêm para Los Angeles para tentar entrar no mundo do cinema sem grande sucesso.

Ferida sentimentalmente Diane encontra-se com um assassino num restaurante, em que são atendidos por uma empregada angelical e bastante simpática de seu nome Betty, e contrata-o para matar Camilla. Este diz que lhe aparecerá em casa uma chave azul quando o assassinato for concretizado o que é mais uma marco temporal pois existem cenas em que a chave está em cima da mesa e outras em que ainda não.

Ao regressar a casa Diane, corrompida pelo arrependimento, deita-se agitada e com uma respiração ofegante, deita a cabeça na almofada para dormir (logo na cena inicial do filme depois da dança).

É aqui que começa o sonho.

Diane adormece...

Todos nós já tivemos sonhos em que colamos bocados do nosso dia a dia, frases, imagens, sítios pessoas, do que pensamos das pessoas, etc... e David Lynch concretiza com genialidade esse fenómeno tão comum mas ao mesmo tempo tão intrigante.
Diane adormece então e começa com um sonho...

Chega a Los Angeles para se tornar actriz. Encontra um casal de idosos cuja mulher a tinha acompanhado durante a viagem e com quem parece ter criado enorme empatia. Eles desejam-lhe sorte. Esta situação representa aquele cliché de que se uma pessoa de idade, estranha, gosta de nós é por que afinal nós somos boas pessoas, dotadas ainda de uma inocência quase-infantil que nos torna merecedores do afecto maternal de alguém que se assemelha às nossas avós.

No seu sonho Diane é "Betty", personificando a doçura e simpatia da figura da empregada do Winkies, ou pelo menos o desejo de tal.

Ao ter-se deitado agitada e com um grave sentimento de arrependimento é normal que Diane tenha sonhado com um cenário em que a Camilla se safou do assassinato, representado pela tentativa falhada de homicídio na Mulholland Dr. que culmina um acidente trágico em que a única sobrevivente é uma Camilla mnésica e frágil que foge para a cidade e se refugia em casa da tia de Diane (ou "Betty").

"Betty" chega a casa da sua tia, que foi fazer cinema para o Canadá, e lá encontra Camilla no banho a quem tenta depois ajudar a descobrir quem é. Algumas ligações com a vida real aparecem neste sonho:
  • A responsável pelos apartamentos é Coco (mãe de Adam) que utiliza a mesma expressão «Chama-me Coco, é o que todos me chamam»
  • Na mala de Camilla existem os 50.000 dólares que foi o que Diane ganhou no concurso de dança
  • Também existe uma chave azul dentro da sua mala
  • "Betty" ao tentar ligar para si própria ouve a sua voz no atendedor de chamadas.
Na sua busca pela identidade de Camilla, "Betty" encontra-se a ela própria, morta numa cama, como que a romper com aquilo que era anteriormente e é-lhe dito, por uma vizinha que é na verdade a sua namorada fora do sonho, que Diane estava desaparecida e que tinham trocado de casa. Esta também pode ser uma imagem metafórica de que, para Diane, estar sem a Camilla é o mesmo que estar morta ou então um desejo de observar o sofrimento de Camilla ao vê-la morta constatando que a perdeu definitivamente.

Neste sonho o ódio por Adam Kesher é materializado pelos inúmeros infortúnios que lhe acontecem ao longo do dia. No fundo foi ele quem lhe roubou a sua amada. Desde uma incrível trama com uma máfia irreal de Hollywood que lhe destrói a vida até ao facto de mesmo a insignificante rapariga loira que beija Camilla no jantar ser a escolha obrigatória para o seu filme. Diane, ou "Betty", portadora de um grande talento no sonho, que na verdade reflecte a frustração real de ser uma actriz falhada, é mais uma vez posta de lado até mesmo por uma rapariga que na vida real tem o direito de beijar Camilla, direito esse que lhe é privado durante o jantar.

O assassino também é ridicularizado pois passa por uma série de homicídios desastrados que reflectem um desejo de que ele, na vida real, não tenha sido capaz de concretizar o assassinato de Camilla.

Surge então no sonho uma relação amorosa quase perfeita entre "Betty" e Camilla até que chegam ao "Clube Silêncio". É aqui, para mim, que se percebe que se está num sonho. Ouve-se que nada do que parece o é, e que nada do que está a ser ouvido, ou contado, existe dessa maneira. São coisas que já existem...é uma gravação da realidade.
É neste Clube que se ouve Rebecca del Rio a cantar Llorando o que fecha o ciclo:

(...)
Llorando por tu amor
Luego de tu adiós sentí todo mi dolor.
Sola y llorando,
Llorando
(...)

Esta música representa o momento em que "Betty" percebe que perdeu realmente Camilla. Este facto o passar da realidade para o sonho faz com que "Betty" entre num choro quase doentio pois é o adquirir da consciência de perda.

Então "Betty" desaparece, e Camilla abre a caixa e Diane acorda do seu sonho atormentada por alguém que bate à porta e pelo casal de idosos, que no fundo representam a sua consciência, a rirem-se dela.

Diane acorda...

Ao acordar Diane está em casa.
Aqui a sua namorada real, aquela que misteriosamente tinha trocado de apartamento com ela no sonho, entra em casa para levar um caixote com as suas coisas e vê-se claramente que existiu uma separação, provavelmente devido à relação de Diane com Camilla. Um dos objectos que ela leva é um cinzeiro em forma de piano que é mais um dos marcos temporais do filme pois em cenas anteriores o cinzeiro está ainda presente.

A chave encontra-se em cima da mesa o que indica que isto acontece depois do assassinato ter sido efectuado.

Basicamente, segundo esta minha interpretação, a primeira cena é real, o resto é um sonho, e culmina com a frustração e o peso na consciência de Diane depois de acordar.

Pode ser assim, ou não, mas no fundo o fantástico deste filme é mesmo isso. Por mais pessoas que fale sobre este filme diversas são as explicações possíveis para o mesmo. Porque cada pessoa é diferente e a arte é isso mesmo.

Entretanto caso tenham algo a acrescentar ou outra teoria sobre o MD não hesitem em comentar!
 
 
 
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Oh não sabia que tinha dado ontem :x

    Já vi há muito tempo...há coisas que já não me lembro, tenho que rever, mas lembro-me que na altura foi difícil de interpretar

    *

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  2. Ti, à terceira vez é que percebi. Ri-me como uma tola porque achei o filme transparente. Na primeira vez...que comidela de cabeça. Nem consegui dormir porque nada fazia sentido. Obrigada pela explicação :D

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